terça-feira, 12 de junho de 2012

cinema brasileiro -- ditadura e democracia



Foto:
Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade (1972)
O cinema brasileiro terá sido omisso ao deixar de lado os crimes cometidos por policiais e militares, a serviço do Estado, entre 1964 e 1985? Os filmes produzidos nos anos de ditadura, e mesmo depois, a partir da anistia e do fim do regime militar, ignoraram ou demoraram a tratar das violações dos direitos humanos que a Comissão da Verdade, instalada há três semanas, tem agora por missão investigar, esclarecer e tornar públicas?
As respostas a essas perguntas, e outras correlatas, são mais difíceis do que sugere matéria de André Miranda, publicada sexta-feira na primeira página do Segundo Caderno do Globo ("Exorcizando o chumbo", 1 de junho). [Leia a versão online aqui]
Ao comparar contextos políticos e culturais tão diversos quanto os da Argentina, Chile e Brasil, Miranda afirma que "as artes nacionais pouco se debruçaram nos anos seguintes [ao fim do regime militar] sobre histórias relacionadas ao período" e indica uma retomada recente do tema dos direitos humanos.
Não há dúvida que 15 anos – do golpe que derrubou João Goulart da Presidência da República, em abril de 1964, à promulgação pelo presidente Figueiredo da Lei de Anistia, em agosto de 1979 – foram regidos pelo medo. Em especial, o período que vai da decretação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968, à sua revogação pelo presidente Geisel, dez anos depois, dando início à chamada "abertura, lenta, gradual e segura".
Tinha-se medo e havia boas razões para isso. Voltou-se a dançar, de fato, "o baile do medo", mas é difícil conceber que o pavor dessa época possa ser comparado ao que teria continuado a existir após o fim do regime militar. E que a persistência desse temor explique, como afirma a matéria do Globo, não terem sido realizados de imediato filmes tratando dos crimes cometidos por agentes do Estado no período imediatamente anterior.


Quanto ao poder inibidor da alegoria, também indicado por Miranda como explicação para a escassez de títulos tratando dos direitos humanos quando foi reestabelecido o regime democrático, não há nenhuma evidência nesse sentido. O breve período de seis anos (1967-72) em que meia dúzia de filmes – de Terra em transe (1967) [foto ao lado] a Os inconfidentes (1972) – recorreu à alegoria para refletir o que ocorria no País, não chegou a constituir "tradições alegóricas", para usar a expressão de Miranda, capazes de influir no cinema brasileiro das décadas seguintes, nem de impedir o surgimento, no período posterior a 1985, de um cinema voltado para os crimes cometidos por agentes do Estado.
A linguagem alegórica teve vida breve. E não foi por acaso que coincidiu, por um lado, com o auge da repressão, e de outro que tenha perdido relevância no período de predomínio da Embrafilme.
Tentativas ingênuas de reagir à perplexidade diante do golpe de 1964, como a de O desafio (1965), ou a de tratar das manifestações políticas contra a ditadura, ocorridas em 1968, como a de Manhã cinzenta (1969), haviam se tornado inviáveis. E a partir de 1974, para produzir, o cinema brasileiro passou a depender financeiramente da Embrafilme, empresa de economia mista controlada pelo Estado, enquanto a exibição dos filmes continuou condicionada à liberação por parte da Divisão de Censura de Diversões Pública - DCDP, subordinada ao Departamento de Polícia Federal do ministério da Justiça. Criada em 1969, a Embrafilme passou progressivamente a concentrar todo o apoio à atividade cinematográfica, enquanto a censura continuava atuando de forma autônoma. Ou seja, o mesmo Estado, controlado pelo poder militar, que, com uma mão, estimulava, com a outra, tolhia. Paradoxo e compromisso que os cineastas assumiram, de fato, em nome da preservação da atividade cinematográfica, pagando por isso, sem dúvida, o preço da autocensura e da crítica pelo favorecimento do patrocínio estatal.
Ainda assim, basta consultar Roteiro da intolerância, de Inimá Simões, ou acessar http://www.memoriacinebr.com.br/ para comprovar que não foram anos tranquilos para o cinema brasileiro, tendo havido dificuldades constantes para obter liberação dos filmes, mesmo quando não lidavam com assuntos políticos que pudessem ser considerados inconvenientes pelo regime.
De O desafio (1965) – recebido com desconfiança, em Brasília, onde um militar, segundo Inimá Simões, teria perguntado: "Desafio por quê? Quer desafiar quem?" – a Pra frente Brasil (1982), passando por Terra em transe (1967); Cara a cara (1967) – "seria de bom alvitre que filmes como esse não fossem realizados", escreveu o chefe da Censura ao determinar o "corte da cena da alcova, desde o momento em que aparecem os dois corpos nus, em colóquio amoroso, até o momento em que a moça aparece de frente, de braços cruzados" –; Liberdade de imprensa (1968) – cuja única cópia foi apreendida no Congresso da UNE, em Ibiúna –; Desesperato (1968), El Justiceiro (1969) – cujas cópias foram apreendidas com o filme em exibição e o negativo do filme sequestrado por ordem do general que dirigia a Polícia Federal –, etc. o cinema brasileiro persistiu submetido à intolerância dominante.
Quanto à "incapacidade de tratar o real pela frente", que Silviano Santiago menciona na matéria do Globo, no caso do cinema, bastaria fazer referência a um filme para ter que qualificar melhor essa afirmativa.

Com a anistia, em 1979, Eduardo Coutinho retoma o projeto interrompido do filme Cabra marcado para morrer [foto ao lado], agora em forma de documentário; começa a filmagem em 1981, e conclui o filme, com recursos da Embrafilme, em 1984, ainda durante o governo do general Figueiredo.
Cabra marcado para morrer respondeu, portanto, no calor da hora à história recente, sendo, além de outros aspectos importantes, uma reflexão crítica madura sobre os vinte anos anteriores, além de um libelo em defesa da dignidade da mulher e do homem comuns.
E haveria ainda outros filmes a mencionar, como Eunice, Clarice e Teresa (1979), Nunca fomos tão felizes (1983), além dos realizados por Renato Tapajós, que, ainda em 1975, fez o curtametragem Universidade em crise, seguido de Linha de Montagem (1982) e Em nome da Segurança Nacional (1984)
E Que bom te ver viva, em 1989, (citado na matéria do Globo), também financiado e, de início, distribuído pela Embrafilme no seu último ano de existência.
Omitir Cabra marcado para morrer e os demais filmes, como fez André Miranda, pretendendo que "as artes nacionais pouco se debruçaram" sobre o período histórico anterior, é um equívoco. Os títulos acima desmentem a suposta demora do cinema brasileiro em tratar da situação política pelo simples fato de que, na verdade, esse tema nunca deixou de ser abordado. De uma maneira ou de outra, de 1965 a 1989, no estreito limite das suas possibilidades, cineastas refletiram sobre o que ocorria no País.
O que a matéria de André Miranda também deixa de mencionar é a influência decisiva que o modelo de produção baseado em incentivos fiscais veio a ter, a partir de 1994, na definição de rumos do cinema brasileiro. Enquanto persistiu a crença de que empresas privadas fossem carrear recursos significativos, com isenção fiscal, para a atividade, parece evidente que as violações de direitos humanos ocorridas entre 1964 e 1985 não estiveram entre as prioridades dos departamentos de marketing. Foi apenas à medida que esse modelo começou a mostrar seus limites, e os principais, para não dizer únicos, investidores passaram a ser empresas estatais, que o tema ressurgiu no horizonte do cinema brasileiro.
São as distorções crescentes do modelo de produção vigente, e a burocratização perniciosa da atividade, que têm protegido feridas abertas e tendem a afastar o cinema brasileiro, cada vez mais, da realidade do passado e presente do País.
Tendo sido necessários mais de 25 anos para instaurar a Comissão da Verdade, faz algum sentido cobrar do cinema brasileiro, como fez a matéria do Globo, uma suposta demora em tratar das violações dos direitos humanos?
Sobre:
Eduardo Escorel é cineasta. Entre outros filmes, dirigiu "Visão de Juazeiro" (1970), "Lição de amor"(1975) e "O tempo e o lugar"(2008). Finaliza, no momento, os documentários "1937-45, Imagens do Estado Novo" e "Paulo Moura - Imaginação e Estilo".

Admilson Barbosa Fotógrafo e Segurança de Eventos

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